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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Só um filme na memória

Era um homem de poucas palavras. Gostava mesmo das imagens, não se cansava de repetir o velho ditado de que elas valiam muito mais. “Coloca uma foto do assassino com a arma na mão na frente do juiz. Não adianta nem implorar”.
Com a sua filosofia seguia a vida atrás da câmera, uma Leica antiga, película, lente 50 milímetros fixa, herdada de um fotógrafo simpático que conhecera durante a segunda guerra mundial. Em relação a sua técnica, tinha orgulho de não usar de artifício nenhum para obter uma boa foto. “Bato sem flash, que é para não modificar a cena, se for para sair escura que saia!”. Era bodegueiro de profissão, mantinha no Bituva Papuã, lugar de onde só saiu para lutar na tomada de Monte Castelo, um bar pulguento daqueles com voltas de linguiça penduradas em cabos de vassoura cerrados. O ‘gole’ era barato e ele se divertia em ver as partidas acirradas de sinuca na mesa de fichas capenga. Os clientes habituais a chamavam de pirambeira.
Mas Zé, ou Tico, não importava como os bêbados o chamavam, era aficionado mesmo pela fotografia. Male mal sabia escrever, apenas o suficiente para anotar os nomes dos fiados. Fazia as contas sempre em pedaços de papel dos maços de cigarro abertos. E era bom de contas. Melhor ainda na sinuca, mas inigualável na fotografia. Já havia fotografado quilômetros de filme. Das crianças brincando no ribeirão ao corpo do João Cachaça, estirado no chão depois de uma briga de facas na festa da Igreja. Até hoje não se sabe por que Miguelzinho fez aquilo. Os dois eram companheiros de bar e de futebol.
A poucas pessoas era dado o direito de ver as fotografias. Dizia que eram o seu diário e por isso não gostava de muitos olhos. A revelação era feita em casa mesmo, num quarto puxado, feito das paredes que sustentavam a caixa d’água do bar. O processo era sempre seguido da mesma forma, como em um ritual sacro. Primeiro fecha a porta, veda bem para não vazar luz. Abre o rolo de filme, normalmente um ISO 400 preto e branco, desenrola e coloca no carretel. Previamente no revelador, depois o fixador, lava bem entre um e outro para não misturar a química. A ampliação era feita na cidade porque o velho ampliador já não funcionava mais.
Agregadas às muitas fotos estavam suas lembranças. O gol do Eliosmar na final do torneio de 74, chorado, de canela, mas que valeu a bebedeira de toda uma semana. A sua falecida mãe na máquina de costuras remendando as calças do pai. A irmã mais nova vestida de noiva momentos antes de entrar na igreja para casar com o Amauri, seu amigo de infância. Tantas eram as fotos que podia passar dias contando histórias ilustradas, mas em meio a todas havia uma mágoa. Um desrespeito que lhe custou a solidão.
Maria Clara era o nome da personagem, filha do Juca Preto, moça direita que o Zé (ou Tico) almejava desposar. A história nunca foi bem contada. Uns dizem que ela pediu uma foto em trajes íntimos por devaneio da idade, outros que ele forçou a amada a abrir-lhe a intimidade. Verdade mesmo é que a foto foi feita, numa tarde de primavera ao lado do tanque. A moça vestindo apenas uma flor atrás da orelha, cena que foi sumariamente interrompida pelo pai Juca, que saiu arrastando a filha pelos cabelos. Maria Clara nunca mais foi vista depois do episódio. Os pais a mandaram para um convento, lugar onde, segundo eles, seria possível conter o fogo pecaminoso que havia dominado a doce menina.
Daquele dia Zé (ou Tico) guarda apenas o negativo e a imagem na memória. Nunca comentou o fato e nem tampouco teve coragem de revelar o filme. Um retrato que guarda ainda virgem, longe dos olhos do mundo, igualzinho ao que fizeram com sua amada.

* Rafael Kondlatsch é jornalista e fotógrafo.