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terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Pelo direito de dizer a verdade

“O motorista do Fusca azul, Francisco Noronha, sem tirar o pé do acelerador, reduz da quarta marcha para a terceira, em seguida para a segunda, e, ao girar o volante à esquerda, a roda dianteira bate no canteiro divisor de pista. Sem perder o controle, imediatamente ele gira à direita e segue em direção à calçada oposta. Sobe o meio-fio. Quase atropela um grupo de jovens, que tenta proteção junto ao muro. Ao desviar deles, por sorte, bate com a traseira em um poste na esquina. O Fusca se alinha sobre a calçada da Brasil, com a frente apontada à direita, que está livre para a fuga (...)”.

Essa narrativa constitui o primeiro parágrafo do livro “Rota 66”, do jornalista global Caco Barcellos, e descreve a fuga desesperada de três rapazes de classe média do camburão da Rota Ostensiva Tobias Aguiar, que figurou como um dos mais temidos esquadrões da morte do país. É um início de tirar o fôlego e as linhas que seguem esse recorte são cada vez mais sensacionais, te fazendo querer ‘devorar’ o livro todo em poucas horas. E ele é bom, tanto que valeu ao autor o Prêmio Jabuti na categoria melhor reportagem de 1993. E, além do troféu, o livro rendeu também um exílio ao jornalista que, por causa da matéria, conseguiu a prisão de uma série de policiais bandidos que usavam a farda para cometer crimes brutais contra jovens, na maioria negros trabalhadores honestos e pobres, da cidade de São Paulo.

Gosto desse livro, aliás, acho grandes reportagens como essa, que levou mais de 20 anos para ser concluída, uma das maiores contribuições do jornalismo para a sociedade que espera exatamente isso de nós: a verdade e nada além dela. Contudo, na quinta-feira passada descobri que o Caco Barcellos criou essa sequência de fatos que contam exatamente como se deu a perseguição do Fusca azul pelas ruas de uma zona nobre da capital paulista. A revelação me foi feita pelo pesquisador Juan Domingues durante o Seminário Internacional de Comunicação realizado na PUC de Porto Alegre. Estávamos no mesmo Grupo de Pesquisa sobre estudos de jornalismo e Domingues apresentou sua tese de doutorado onde investiga a ficção do Novo Jornalismo nos livros reportagem do Caco Barcellos e Fernando Morais (que escreveu obras como Olga e Chatô, ambos bons livros).

Segundo Juan, durante uma palestra para estudantes o próprio Caco Barcellos assumiu que inventou o trecho da perseguição usando como base o relato dos policiais e seus conhecimentos como taxista, uma vez que os ocupantes do Fusca foram sumariamente executados e não poderiam descrever qualquer movimento do carro em fuga. Confesso que a revelação me deixou incomodado com a literatura das grandes reportagens. E depois essa inquietação passou também para o jornalismo em si. Vivemos um período de descoberta das novas formas de fazer notícia, a internet tem aberto mundos novos e estendido plataformas inigualáveis de possibilidades de comunicação. Mas até que ponto estamos sabendo como utilizar essa estrutura? E mesmo no jornalismo tradicional impresso: por onde andam os limites da informação isenta, sem intenção velada (ou não) de criação de verdades?

Todos os dias somos bombardeados de noticias na TV, no rádio, nas revistas, jornais, sites e até por SMS no celular. Recebemos toda essa carga, mas aparentemente não temos tempo para digerir esse conteúdo. Está tudo tão superficial que não nos damos conta da necessidade de aprofundar algumas dessas questões, muito pela efemeridade do nosso tempo, um pouco pela baixa qualificação nas redações, um tanto por conta da falta de escrúpulos das pessoas que dominam a informação mesmo. Percebemos que, a cada dia, menos se utiliza da reflexão para entender o que há por trás dos textos dos meios de comunicação, tanto nos escritos quanto nos verbais. E existe também uma diminuição nos atributos dos profissionais que produzem esse material e que, guiados pela pressa e por falsos conceitos, se dão ao direito de determinar quem fala a verdade e em que medida. E comum vermos notícias ganhando amplitude sem a correta averiguação dos fatos, com a versão de apenas um dos lados envolvidos na história. Isso infelizmente deixa de ser jornalismo para virar um marketing de guerrilha, seja ele praticado pela Revista Veja - e sua incansável luta contra a esquerda, ou pelo programa de rádio do locutor populista.

Numa época em que se discute a exigência ou não do diploma de jornalismo, acho importante debater os limites dessa profissão, uma vez que o direito de informar deve ser defendido a qualquer custo, da mesma forma que a obrigação de fazê-lo corretamente e com respeito pelo público precisa e deve ser cotidianamente reafirmado. Uma frase que deveria nortear a todos os repórteres, diplomados ou não, é que deixemos a criatividade apenas para a literatura e foquemos na “verdade não mais que a verdade”. É apenas isso que esperam de nós.

Por uma cultura maiúscula

Rio Negro está de parabéns. Não só pelo aniversário, comemorado hoje, mas pelo incentivo à cultura erudita prestado no último domingo com a apresentação da Orquestra Sinfônica do Paraná - OSP. A cidade, aliás, recorrentemente tem dado força ao estilo, vide a apresentação da dupla de violinistas “Kaiser-Schmidt Gitarren”, realizado dias atrás. Sem contar as já tradicionais audições realizadas pelos alunos da Escola de Música Ana Madalena Bach, das quais tive o prazer de participar tanto como ouvinte quanto como integrante, cantando solo a ária nº 9 de Batien und Bastienne, de Mozart, e, em coro, uma parte da obra La Traviata, de Verdi.

O que quero ressaltar nessa coluna, contudo, é algo que venho debatendo desde 2006 quando afirmo que Riomafra, agora juntando as duas margens do rio, tem público mais que suficiente para esse tipo de evento cultural. Prova disso são as casas lotadas em todas as passagens de orquestras pelas duas cidades, sejam elas experimentais, sinfônicas ou de câmara. Não importa a condição climática nem o local, pois elas sempre agregam seu fiel público para prestigiar e viver essa música. A essas pessoas também pouco interessa qual será o conteúdo das apresentações, sejam elas de chorinho de Ary Barroso, ou tons mais sérios, como a abertura do Idílio de Siegrifid, do compositor alemão Richard Wagner, executado na noite deste dia 13, no princípio da apresentação da OSP no Clube Rionegrense.

Em relação a espaço físico para essas apresentações Mafra leva vantagem sobre Rio Negro por já dispor de um teatro que, embora seja privado, oferece uma estrutura invejável até para grandes cidades. Afinal, o Emacite é destaque reconhecido pela acústica extraordinária alcançada graças ao projeto do engenheiro Rubens Méister, que também foi responsável por construções como o Teatro Guaíra, em Curitiba. O lugar é tão bom que causa constrangimento ver a destruição de suas poltronas pelos vândalos que se disfarçam de espectadores em sessões de filmes exibidos no local. Tenho uma teoria que essa depredação é reflexo do público-alvo obtido pelos péssimos filmes, dublados, que entram em cartaz, mas isso é assunto para outra coluna.

Voltando a existência de apenas uma casa de espetáculos, essa diferença deve acabar em breve se a ideia de um Teatro Municipal, aventada pelo secretário de cultura de Rio Negro, Ayrton Gonçalves Celestino, for concretizada. Segundo ele, a participação maciça dessa parcela considerável de admiradores da ‘boa música’ é parte fundamental do processo de convencimento do Poder Executivo a realizar a construção do referido teatro, que representaria, em minha opinião, um passo importante para uma valorização ainda maior da cultura na região. Referendando a proposta, fizemos nossa parte em bom número.

Porém, não basta ter o teatro e uma plateia lotada. Precisamos pensar em um público cativo educado para cada apresentação. Seria interessante desenvolver projetos voltados a ensinar sobre a música erudita para que as pessoas saibam apreciar essas pérolas tendo um conhecimento de causa maior. É importante que saibamos como funciona uma apresentação, tendo em mente que o silêncio absoluto é importante para a concentração dos músicos e que não devemos aplaudir entre os movimentos de uma mesma música, por exemplo. Da mesma forma, seria bacana a confecção de folders explicativos com um pouco da história dos compositores representados no espetáculo, contando também sobre as escolhas do maestro para a apresentação. Isso tudo é muito simples de se fazer e, se não em folders, por questão de custo, poderia ser feita uma explicação no microfone por um mestre de cerimônias mesmo. Essas medidas deixariam o espetáculo mais interessante para as pessoas que gostam do estilo, pois transformaríamos a plateia de mera espectadora em apreciadora.

E não há como negar que o conhecimento traz um valor diferente à apresentação. Meu amigo João König, por exemplo, gosta quando os músicos executam alguma peça barroca como Bach ou Vivaldi em meio às do período clássico e, na apresentação deste domingo, ficou feliz porque a Orquestra Sinfônica do Paraná finalizou com o Molto Allegro da Sinfonia em Sol Menor nº 41 do Mozart, uma decisão que o agrada. Para entender o que isso significa, seria como pedir Toca Raul (!) e a banda realmente tocar Raul.

Se tivéssemos esse conhecimento prévio, que com certeza seria agregado a cada novo concerto, saberíamos valorizar ainda mais a participação de pessoas como o solista de trompete Heinz Karl Schwebel, um dos maiores instrumentistas do país, internacionalmente conhecido e que já tocou com maestros consagrados como o indiano Zubin Mehta. Schwebel esteve aqui, junto com a OSP, tocando de graça em uma performance que realçou a importância do evento de aniversário da cidade. Por tudo isso novamente parabéns a Rio Negro, 141 anos com propriedade de uma senhora de bom gosto.